segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Na tua onda

Por Arnaldo Bloch



Os tubos de Copacabana, pela altura
do Posto 2 em dias de ressaca, vistos
das janelas de esquadrias de alumí-
nio nos anos 70, eram de arrepiar de
tão altos. A queda era vertical, sem apelação,
e o som parecia uma casa ruindo. Não à toa o
pessoal chamava de “tijolão”. Eu primeiro es-
piava pela janela, mesmerizado, menino, da
casa da avó. Depois ia de mãos dadas com
mamãe, baldinho na outra mão, o cheiro de
maresia ensolarada já começava no corredor
que dava acesso à saída de serviço, pela enor-
me garagem. Na praia, o banho era de espu-
ma, ou dentro dos buracos, cavados com pa-
zinha, que o repuxo das ondas enchia subita-
mente, emoção gelada, água nova com sabor
de conchas e de tatuí que a gente catava e cor-
ria na direção da barraca colorida onde esta-
va mamãe, era para ela a oferenda, balde de
água, balde de areia, balde de concha, balde
de tatuí, balde cheio, vazio, mamãe, para ti a
minha onda, todas as ondas, tuas.

Coitada da mamãe quando, anos depois,
adolescente, já me aventurava na rotina do fu-
ra-onda — por cima, por baixo, pelo meio, a
depender da distância, riscos calculados de
levar um caixote, ensinamentos de meu pai,
gordo e ágil professor, eram as ondas que ti-
nham medo dele. Mamãe panicava lá no raso,
achando que o filhote seria sugado para os
fundos do oceano. Logo, logo, eu já me inicia-
va na arte do jacaré. Copacabana não era
brincadeira, não. As ondas quebravam como
uns machados. Eu não era muito bom de mi-
rar o centro daquele caracol azul, aquela es-
piral de luz esmeralda, mas, quando conse-
guia, que glória!, o tubo. Eu já andava sozinho
com uma rapaziada do Posto 5 que dizia “mo-
rô, xará?”, mas, de vez em quando, mamãe, es-
condida, ia supervisionar. Certa vez tomei um
tijolão maiúsculo e demorava a emergir da
embolação. Mamãe achou que Iemanjá tinha
me levado, e, sem qualquer experiência, mer-
gulhou para me salvar ou morrer junto. Levou
o maior caixote da História e acabou toda ra-
lada pela arrebentação. É ela quem conta a
história, da qual eu mal me lembro: que, ao
abrir os olhos, viu o filho diante dela, são e
salvo, com um ar interrogativo, cândido:

— Oi, Mamãe Iná! Não sabia que você gos-
tava de pegar jacaré.

Mamãe Iná. Era como eu a chamava. Um
primo, o Sérgio, que me ensinou violão, dizia
que, se ela era a Mãe Iná, eu era o Filho Ar-
naldo. Pois sou, até hoje, o Filho Arnaldo, tan-
tas vezes tão ausente, mas ainda desejoso de
levar, num balde, ou no puro movimento na-
tural, a onda maior, a onda rainha, como di-
zem os pegadores, a onda rainha para a rai-
nha mãe, temerosa ainda de que me leve um
vórtice para longe dela, a cada silêncio, a ca-
da telefonema que não vem, é uma onda que
vai e me carrega para os aléns da amargura,
que tristeza é o que não falta nesse mar.

Teve aquele tempo lindo, de ir cedinho, ao
amanhecer, com o Daniel e o Beto, pegar ja-
caré na confluência entre o Arpoador e Ipane-
ma. O Beto morava na rua do Quase-Quase
(Bulhões de Carvalho), em frente ao ponto do
119. Pegar jacaré em Ipanema era diferente: se
em Copa as ondas despencavam daquele jeito
insensível, as do Arpoador, naquela fronteira,
desciam suavemente, gentis, em diagonal,
sem formar tubo. A gente chamava de “pon-
ta”. As ondas de ponta eram uma delícia por
que pareciam pequenas eternidades: à medi-
da que a gente descia o corpo ia se deslocan-
do ao longo da praia, num átimo de infinito.
Evocavam, mal comparando, numa escala
muito menor, aquelas ondas míticas de “En-
dless summer”, documentadas por Bruce
Brown (não sei dizer qual era a praia, mas
lembro daquelas passagens em que os surfis-
tas, sem sacanagem, deviam ficar uma meia
hora descendo uma só onda, e sobre ela fa-
ziam o percurso inteiro da praia, onda sem
fim, mid-sixties, verão, amor, ao poente).

Nunca surfei. Parei minha carreira no jaca-
ré. Mas tive um primo surfista, mais velho, o
Arnaldo, xará, hoje longe das ondas, mas cu-
jas histórias me comovem. Arnaldo é uma
mente sofisticadíssima, culta, além de ser um
pianista excepcional. Imputo ao surfe um dos
componentes de sua inteligência. Penso que
os surfistas, sobretudo os que persistem, são
seres superiores, abençoados, ao contrário
do clichê que vigora. Afinal, os caras conse-
guem passar a maior parte da vida conduzi-
dos por movimentos da natureza oceânica, ao
vento, ao sal, ao sol, fazendo arte na dinâmica
do corpo. Vivem rodeados de belas mulheres,
conhecendo as mais belas praias, perfazendo
as mais belas viagens da percepção. E ainda
os acusam de falar mal o idioma. Com uma vi-
da dessas, falar o quê? Para quê? “Podes crer”
é mais que suficiente, pois palavras não há pa-
ra descrever uma vida que se quer e se sus-
tenta ao motor da moderação dos costumes e
do prazer da contemplação. Esses, sim, são
os verdadeiros gênios da raça, os filósofos de
mente mais abastada.
Mas acho que andei me desviando do as-
sunto. O assunto era a mãe. Tua onda, mãe.
Aquela que ainda hei de furar, descer, surfar e,
no fim, me embrulhar, eu, água, espuma, cai-
xote, eu, todo, tudo teu, minha, tua onda.

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